Os grupos indígenas e sua distribuição
Autoria: Telmo Remião Moure
Organização Social e Valores
Os povos indígenas que habitavam a bacia Platina se dividiam em pequenas comunidades, formando em alguns casos unidades familiares ou clãs. Cada tribo podia abranger mais de um clã, habitando em uma ou mais aldeias.
Os agrupamentos humanos que os europeus encontraram na América não eram originários deste continente. Sua origem até hoje constitui umenigma para os cientistas, os quais elaboraram várias teorias para explicar de onde vieram os primeiros povoadores da América. Para alguns pesquisadores, eles teriam vindo da Atlântida, que segundo a lenda havia existido entre o norte da África e a América e fora tragada pelas águas do oceano. Outros estudiosos consideram que os indígneas são autóctones, isto é, originaram-se do próprio continente americano.
As teorias mais aceitas atualmente afiram que o estabelecimento de seres humanos em solo americano deve-se às migrações ocorridas há milhares de anos através do estreito de Bering ou de ilhas da Oceania. Ao longo dos séculos, esses agrupamentos humanos se fixaram no continente, e quando os europeus chegaram à América já existiam grupos indígneas desde a Patagônia ao Alasca. Constituíam sociedades diferenciadas, e os únicos que apresentavam instituições sociais e políticas complexas (classes sociais e estado) eram os maias (na AMérica Central), os astecas (no atual México) e os incas (no Peru).
Quanto aos indígenas que viviam na banda oriental do rio Uruguai e as áreas próximas, sabe-se que não eram numerosos e que deixaram poucos vestígios materiais sobre o seu modo de vida antes da chegada dos colonizadores. Por isso, a classificação etnográfica desses povos se baseia em informações coletadas dos contatos estabelecidos entre eles e os europes que ocuparam a região.
Muitas são as classificações dos povos indígenas que viviam entre o oceano Atlântico e a margem esquerda do rio Uruguai. Apesar da importância de cada uma delas, adotaremos a mais usual entre os estudiosos da história do extremo sul do Brasil. Havia na região platina três grandes grupos indígenas: guaranis, pampeanose gês.
Antes e mesmo depois da chegada dos europeus, esses grupos indígenas empreenderam movimentos migratórios característicos de seu modo de vida nômade ou semi-sedentário. Migraram também forçados pela presença dos colonizadores e seus descendentes que ocupavam suas terras ou os aprisionavam para escravizá-los.
Os mais expressivos exemplos de migrações indígenas ocorreram com os guaranis e os minuanos (estes últimos, indígenas do grupo pampeano). Os primeiros, originários do alto Paraná, chegaram à região platina emduas levas, uma provavelmente no século IV d.C. e outra no século X. Atravessaram o rio Uruguai - expulsando dali os guaianás (do grupo dos gês) para o nordeste do atual território do Rio Grande do Sul - e se fixaram numa extensa faixa de oeste a leste do atual território do Rio Grande do Sul. Os minuanos, por sua vez, no século XVII, se transferiram da região compreendida entre os rios Uruguai e Paraná para o sul do rio Ibicuí.
Os guaranis
Os guaranis ocupavam as margens da laguna dos Patos, o litoral norte do atual Rio Grande do Sul, as bacias dos rios Jacuí e Ibicuí, incluindo a região dos Sete Povos das Missões. Dominaram também a parte central e setentrional entre os rios Uruguai e Paraná, bem como a parte sul da margem direita do rio da Prata e o curso inferior do rio Paraná.
Havia entre os guaranis três subgrupos principais: os tapes ( indígenas missioneiros dos Sete Povos), que ocupavam as margens dos rios a oeste do atual território do Rio grande do Sul e o centro da bacia do rio Jacuí; os arachanes ou patos, que viviam às margens do rio Gauíba e na parte ocidental da laguna dos patos; oscarijós, que habitavam o litoral, desde o atual município de São José do Norte até Cananéia, ao sul de São Paulo.
Apesar da variedade de dialetos, o tupi-guarani era o tronco lingüístico comum a esses grupos indígenas.
Os pampeanos
Os pampeanos constituíram um conjunto de tribos que ocupavam o sul e o sudoeste do atual Rio Grande do Sul,a totalidade dos território da República Oriental do Uruguai, os cursos inferiores dos rios Uruguai, Paraná e da Prata. Os subgrupos e tribvos mais conhecidos entre eles foram os charruas, guenoas. minuanos,chanás, iarós e mbohanes. Todos falavam a língua guíchua, com poucas variações dialetais.
Os gês (kaingangs)
Os gês possivelmente eram os mais antigos habitantes da banda oriental do rio Uruguai. É provável que essas tribos começaram a se instalar no atual Rio Grande do Sul por volta do século II a.C. Ocupavam o planalto rio-grandense de leste a oeste e abrangiam vários subgrupos: coroados, ibijaras, gualachos, botocudos, bugres,caaguás, pinarés e guaianás. Estes últimos, no início do primeiro milênio d.C., foram expulsos pelos guaranis da região posteriormente denominada Sete Povos das Missões.
Os gês do atual Rio Grande do Sul foram dizimados pelos bandeirantes, guaranis missioneiros, colonizadores portugueses, brasileiros e ítalo-germânicos. Os grupos que vivem atualmente nas reservas de Nonoai, Iraí, Tenente Portela migraram de São Paulo e Paraná, no século passado, durante a expansão da lavoura cafeeira.
São conhecidos desde 1882 por kaingangs ("kaa" = mato; "ingang" = morador), conforme foram denominados genericamente por Telêmaco Borba (o mais importante estudioso e defensor dos indígneas no século passado).
Organização Social e Valores
Os povos indígenas que habitavam a bacia Platina se dividiam em pequenas comunidades, formando em alguns casos unidades familiares ou clãs. Cada tribo podia abranger mais de um clã, habitando em uma ou mais aldeias.
A divisão desses indígenas em grupos (guaranis, pampeanos e gês) não significa que aglutinavam dezenas de tribos em instituições de tipo federativo ou similares. Na verdade, essa classificação resulta do entendimento que os colonizadores e os pesquisadores tinham (e ainda têm) dos povos indígenas da América. Havia noi nterior desses grupos rivalidades, disputas e guerras.
Todos esses povos se caracterizavam pelo uso de instrumentos de pedra talhada e de ossos de animais. A sobrevivência era baseada na caça, pesca e nas plantas alimentícias. Essas atividades estavam relacionadas com o caráter de vida social nômade ou, em alguns casos, semi-sedentário. Os guaranis destacaram-se mais como agricultores, ainda que praticassem a caça, pesca e a coleta de plantas silvestres. Os pampeanos e os gês, por sua vez, se dedicavama uma agricultura muito rudimentar. Seja como for, nos três grupos o trabalho de preparar a terra para o cultivo era realizado pelos homens, utilizando-se a coivara como recurso básico. A semeadura e acolheira eram executadas pelas mulheres. O exercício da caça, da pesca e da guerra era exclusivo dos homens.
A produção de tecidos e utensílios de cerâmica já era praticada pelos indígenas da bacia Platina. Entretanto, os guaranis aprimoraram as técnicas atesanais, e seus produtos eram trocados por outros objetos e serviços entre as tribvos do próprio grupo, além de favorecer o contato com os pampeanos, gês e os colonizadores europeus e seus descendentes. Para s eprotegerem do frio intenso, confeccionavam também vestimentas de peles de animais.
O inverno também estimulou o desenvolvimento de técnicas para a construção de habitações. No planalto, onde viviam os gês, os rigores do inveno exigiram a abertura de covas de tamanhos variados e cobertas. Algumas dessas covas alcançavam até 18 metros de diâmetro por 7 de profundidade. Muitas vezes serviam para os indígenas se esconderem dos colonizadores.
Acreditavam na existência de bons e maus espíritos. Cada tribo possuía umlíder religioso cujos conhecimentos sobrenaturais tornava-o temido e respeitado.
Todos os grupos e tribos indígenas do extremo sul foram influenciados pelos guaranis. Nem os mais arredios, como os charruas, mbohanes, iarós, chanás e guenoas, deixaram de adotar vocábulos, costumes e crenças guaranis.
A poligamia era usual entre os indígenas da bacia Platina. Os chefes tinham direito a um maior número de esposas, para que pudessem dedicar-se mais à tribo. Os casamentos eram feitos entre indivíduos dos clãs, inexistindo praticamente entre membros de tribos diferentes.
A antropofagia também era praticada, mas limitada aos rituais religiosos.
Os indígenas davam grande atenção à limpeza corporal. Os banhos nos rios e riachos faziam parte de seu cotidiano. tanto os homens como as mulheres enfeitavam-se com penas de pássaros, pequenos ossos de animais, pedras e madeiras, além de usarem os mais diversos tipos de penteados.
Pintavam o corpo com tinturas vegetais e minerais, de acordo com cada momento: nascimentos, casamentos,mortes, guerras e cerimônias religiosas.
O contato dos indígenas com os colonizadores europeus
A conquista da banda oriental do rio Uruguai pelos europeus e seus descendentes teve graves conseqüências para os indígenas. Foi uma história de saques, pilhagens, mortes, dores e lágrimas. Em nome dos valores cristãos-ocidentais, praticou-se o genocídio dos indígenas, a apropriação de suas terras, a destruição de seua cultura.
Nas primeiras décadas da presença européia na América, a escravidão indígena para o trabalho em minas, engenhos e fazendas gerou intensa polêmica. O dominicano Bartolomeu de Las Casas conseguiu que o rei Carlos I, da Espanha, permitisse a utilização da mão-de-obra africana nas colônias e proibisse a escravidão indígena. Em 1534, o Papa Paulo III caracterizou os indígenas americanos como seres humanos, isto é, possuidores de alma. Isso não bastou, e os indígenas continuaram sendo tratados pelos colonizadores como se fossem animais.
A colonização da América provou uma ilimitada oferta de terras, e a carência de trabalhadores livres para cultivá-las estimulou a escravidão indígena.
Assim, os indígenas que viviam na banda oriental do rio uruguai foram caçados e aprisionados pelos bugreiros e bandeirantes nos séculos XVII e XVIII. Eram utilizados como soldados nas campanhas militares entre portugueses e espanhóis e para combater outras tribos. Além disso, os indígenas foram exterminados pelas doenças que acompanhavam os colonizadores europeus.
Existe uma farsa ao considerar o indígena indolente, um preguiçoso incorrígivel. Se essa concepção fosse verdadeira, porque ocorreram centenas de expedições conhecidas como bandeiras, caçando indígenas para vendê-los como escravos? O capítulo sdos bandeirantes, presente em todos os livros de História do Brasil, é pura ficção? Se o indígena era ocioso e imprestável ao trabalho, porque as reduções alcançaram níveis eficientes de organização produtiva? Tanto isso preocupou os interesses dos portugueses e spanhóis que as reduções sofreram boicotes econômicos, pressões políticas e destruições militares.
Considerar o indígena um vagabundo equivale a negas as raízes históricas do Rio grande do Sul, uma vez que os domadores e vaqueiros, iniciadores da formação social criadora de gado nas estâncias eram indígenas. O gaúcho descende desses.
Já no século XIX, a implantação da lavoura de café em São Paulo obrigou os indígenas a procurarem refúgios em outras regiões. Os que chegaram ao Rio Grande do Sul estabeleceram-se em áreas do planalto, mas logo foram ameaçados e destruídos pelos agricultores de origem européia que recebiam pequenos lotes de terras. Os imigrantes, a maioria germânicos e italianos, recorriam aos serviços de bugreiros especializados na destruição de aldeias e na matança de indígenas. Isso explica por que os gês do Rio Grande do Sul já não existem. Os que migraram de são Paulo pertencem ao grupo kaingang.
A destruição dos pampeanos foi facilitada por seu modo de vida nômade. Sobrevivendo da caça, pesca e coleta de vegetais, a ocupação das terras pelos criadores de gado impediu que esses indígenas se deslocassem de um lugar para outro, o que acabou destruindo sua cultura. Os pampeanos foram extremamente arredios aos contatos com os europeus e seus descendentes. Eles jamais aceitaram as reduções jesuíticas. Mesmo assim, eram frequentemente envolvidos nas lutas entre portugueses e espanhóis, sendo utilizado nas missões militares mais arriscadas. Nessas condições, eram facilmente abatidos pelos inimigos.
Resultado: hoje não existem remanescentes dos pampeanos no Rio Grande do Sul, uruguai e norte da Argentina (província de Entre Rios e Corrientes).
A descaracterização dos indígenas pampeanos também se deve à sua utilização como peão de estância nos primórdios da pecuária gaúcha. O cavalo, trazido pelos colonizadores, exerceu forte atração entre os indígenas, em especial nos pampeanos, que logo se transforaram em habilidosos cavaleiros. A figura tradiconal do gaúcho (o vaqueiro) está profundamente relacionada com esses indígenas.
Quanto aos guaranis, cabe ressaltar que foram mais receptivos aos colonizadores. As reduções organizadas pelos jesuítas espanhóis assumiram tal importância que escaparam ao controle das coroas ibéricas, obrigando-as a expulsar os jesuítas dos domínios portugueses em 1759, e dos espanhóis em 1768. Após essas providências, aos poucos as terras dos guaranis missioneiros foram ocupadas pelos colonizadores, o gado roubado e a população indígena dizimada, expulsa ou escravizada.
Cotidiano
Os grupos que ocupavam a banda oriental do rio Uruguai vivam em tribos independentes entre si. Cada tribo desenvolveu usos e costumes próprios. Não existiam governos organizados segundo os padrões da história européia. As chefias tinham caráter mais operacional do que de mando. Os assuntos mais importante eram resolvidos em reuniãos com todos os homens da tribo. A igualdade entre os membros da tribo era um princípio fundalmental e constante. As diferenças individuais implicavam em divisões de tarefas por sexo, idade, habilidade para caçar e força para a guerra.
Caçavam emas, veados, perdizes, perus, lontras, capivaras, lagartos, jaguares, pumas, zorros, cobras. Nos rios e na costa oceânica apanhavam peixes e moluscos. Coletavam plantas e frutas silvestres como o araçá, a pitanga e o butiá. As tribos semi-sedentárias cultivavam batata, mandioca, amendoim, milho, abóbora, algodão e mate. O cultivo era feito em lugares úmidos e protegidos pela mata. Domesticavam espécies de galinhas e patos, além de papagaios e pequenos animais selvagens.
O comércio entre as tribos era quase desconhecido. As tribos guaranis produziam alguns tecidos que eram trocados com outras tribos, sem regularidade.
Não foram artistas mas foram artesãos. Trabalharam a mandeira, o osso, o barro e a pedra produzindo objetos destinados à guerra, à caça, à pesca e à preparação de alimentos.
A caça e a guerra exigiram a criação de armas mais ofensivas do que defensivas. Para triunfarem nas lutas utilizavam os ataques de surpresa, as falsas fugas e emboscadas. Pintavam o rosto e o corpo para aterrorizar o inimigo e para dissimulação entre as folhas dos vegetais.
Acreditavam em uma vida pós-morte, visto que haviam rituais ao enterrarem os mortos em cestos de palha ou urnas de barro. Existiam tantas religiões quantas eram as organizações tribais. Há histórias que se referem à origem do mundo, à criação do homem (gerador do grupo social), às divisões de tarefas e obrigações sociais, às diferenciações entre o bem e o mal.